Por que os médicos estão mais vulneráveis do que nunca?
Nos últimos anos, a prática médica tem enfrentado um fenômeno crescente no Brasil: a judicialização da medicina. Esse movimento não é novo, mas ganhou proporções preocupantes. Apenas em 2024, foram registrados 74.358 processos contra médicos e hospitais, um aumento de 506% em relação a 2023. Isso representa uma média de 203 novas ações judiciais por dia.
Esses números revelam que a responsabilidade médica entrou em uma nova era, na qual a atuação técnica, por si só, não é suficiente para proteger o profissional. Médicos que cumprem protocolos e agem com zelo e boa-fé ainda assim estão sendo arrastados para o judiciário. A pergunta que se impõe é: por que os médicos estão mais vulneráveis do que nunca?
O crescimento da judicialização
O crescimento dos processos judiciais contra médicos não se deve apenas a um suposto aumento de falhas profissionais. Ele reflete um contexto mais amplo: um sistema de saúde pressionado, pacientes mais informados (nem sempre de maneira adequada) e uma Justiça acessível, onde ingressar com uma ação é simples e barato.
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), esse cenário coloca a medicina em um dos setores mais judicializados do país. Para os médicos, isso significa enfrentar riscos jurídicos constantes, muitas vezes desvinculados de um erro técnico propriamente dito.
As novas causas da judicialização médica
Até alguns anos atrás, as principais razões para processos contra médicos estavam ligadas a falhas técnicas ou situações de negligência, imprudência e imperícia. Hoje, os motivos se diversificaram. Entre os mais relevantes, destacam-se:
- Excesso de informação sem compreensão: o paciente moderno chega ao consultório com “diagnóstico” pronto, obtido em pesquisas na internet ou em redes sociais. Esse excesso de informação, muitas vezes sem embasamento científico ou mal compreendido, gera expectativas irreais. Quando o resultado não corresponde àquilo que o paciente acredita ser possível, a frustração se transforma em litígio.
- Relação médico-paciente fragilizada: as consultas rápidas, a pressão dos planos de saúde e a falta de tempo para escuta comprometem o vínculo de confiança. Quando o paciente não se sente acolhido, tende a enxergar a via judicial como meio de obter reparação, mesmo sem um erro técnico.
- Acesso facilitado ao judiciário: no Brasil, ajuizar uma ação é relativamente simples: em muitos casos, não há custas iniciais, especialmente nos Juizados Especiais. Além disso, muitos advogados trabalham sob a lógica dos honorários de êxito, cobrando apenas em caso de vitória. Isso estimula o ajuizamento de demandas, inclusive frágeis ou infundadas.
- Confusão jurídica: nem sempre advogados que atuam contra médicos têm formação específica em Direito Médico. Isso leva à judicialização de situações que não configuram erro, como complicações inevitáveis ou iatrogenias. Ainda assim, o médico é obrigado a se defender em um processo que gera custos, desgaste emocional e risco de condenação.
- Má-fé de alguns pacientes: infelizmente, há também aqueles que veem na Justiça uma oportunidade de ganho financeiro. São casos em que, mesmo orientados, informados e acompanhados corretamente, alguns pacientes ingressam com ações buscando indenizações sem fundamento.
O entendimento recente do STJ
A vulnerabilidade do médico foi ampliada por recentes decisões judiciais. Em 2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisou o caso de uma cirurgia plástica estética não reparadora, REsp 2.173.636/MT. O tribunal decidiu que, mesmo sem prova de negligência, imprudência ou imperícia, se o resultado for considerado “desarmonioso segundo o senso comum”, presume-se a culpa do médico.
Esse ponto é crucial: o critério deixa de ser exclusivamente técnico e passa a depender da percepção subjetiva do paciente e do julgador. O que é “harmonia estética” para o senso comum? Essa indefinição abre uma margem de interpretação gigantesca, tornando o cenário de responsabilidade médica ainda mais incerto.
Outro precedente reforçou essa linha ao afirmar que, em ações por erro médico, a inversão do ônus da prova pode ser aplicada em favor do paciente. Isso significa que, mesmo diante de laudos periciais inconclusivos, juízes podem condenar médicos com base em testemunhos e documentos. Em um dos casos julgados, a indenização por danos morais e estéticos chegou a R$ 500 mil.
O que isso significa para a prática médica?
Esses julgados mostram que hoje o médico pode ser condenado não apenas pelo que fez, mas também pelo que o paciente acreditou que receberia ou pelo que terceiros relataram. Em outras palavras: o risco não é apenas técnico, é também subjetivo.
Diante desse cenário, alguns cuidados tornam-se indispensáveis:
- Documentação completa: prontuários detalhados, termos de consentimento bem elaborados e registros fotográficos são fundamentais.
- Comunicação clara: explicar riscos, alternativas e limitações do tratamento reduz frustrações e expectativas irreais.
- Assessoria jurídica preventiva: contar com acompanhamento especializado em Direito Médico ajuda a antecipar riscos e estruturar defesas sólidas.
Conclusão
A medicina brasileira vive uma nova era de responsabilidade. A técnica, embora indispensável, não basta para proteger o profissional. O aumento expressivo da judicialização, aliado a decisões judiciais que ampliam a subjetividade do julgamento, exige dos médicos uma postura proativa de proteção.
Mais do que nunca, é preciso compreender que não basta ser um bom médico, é necessário também estar juridicamente protegido.
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